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28.2.12

Lembro a água a cair no corpo num quarto escuro com roupa para ser dobrada há um ano e livros que esperam pelo agasalho do nascer do sol. No balneário do que é ou deixa de ser que importa o peixe que quisemos ontem, onde está o lado profundo do início da tua e da minha língua ou o extrato rasgado do empréstimo da casa. Sei que à saída deste quarto há uma praia que é vendida em pequenas constelações de coral e um extintor empoeirado tão alheio a tudo como um estorninho a descansar sobre a alta voltagem.

22.2.12

Bebi o dia sentado e devagar posso chegar vegetalmente à sombra desta e de todas as árvores. Sentado posso ler e voltar a ler a tua carta que já não é mais do que uns veios calcários colados ao rosto azul do papel, carreiros de tinta que se enervam e se sobrepõem e até parecem uma boa vanguarda dos anos cinquenta, mas que agora apodrecem num anexo ao pé do jardim por detrás de todas as experiências de germinação de uma flor.

10.2.12

Deram-me este cão com olhos de comboio sem ninguém  e ossos encostados ao pêlo jovem modelo percorre agências e ganha um anúncio obsessivo por um cheiro. Um perfume fome. Pode ser um cão alado de olhos filósofos, pode ser um cão calado de olhos baços, o cão Pereira de olhos  cognac em frente ao fogo, mas ele observa-me para saber quando falar na história e enquanto não se abre na sua boca um romance capaz de convulsionar a europa, um poema para tomar felicidade de oito em oito horas ou um verso para simplesmente dobrar o desejo no bolso, o melhor que fazemos é sair. Esquecer a prova dos cem metros livres entre quarto, sala e casa de banho. Para a praça beijo com bilhete de metro na língua, para os jardins alimentados com excremento de verdade e caroços de fruta diversa sem estética ou validade, eis que temos para oferecer a terna idade olímpica, que o desejo não morre, adormece, que é ou nunca foi lúcido o nosso silêncio e sincera, sim sentimentalmente sincera, esta nossa predisposição para esquecer ou para sonhar.

8.2.12

Imaginei ficar à tua porta, sair do elevador e bater à tua porta. Entrar na minha casa e ver a tua porta abrir-se para mim deitado numa cama sob o teu chão de pequenos automóveis. Já o fizémos em todas as divisões dessa casa que dá para dentro de uma cassete vídeo com festa de aniversário e gente feliz antes do acidente. Ao teu cabelo eu já mudei o cheiro e desapareceu o orvalho da tua pele. Os grãos de areia que havia na tua voz e que deixavas na almofada. Sempre supus que chegasses da Gávea num corsa ou de Niterói num cavalo. Sempre supus que sorríssemos ao meio dia na praia em frente, que tivesses uma boca igual à de Gisele Bündchen e o sentido de classe de Isadora Duncan.